Quando a matéria-prima que “alimenta” as indústrias culturais e (re)criativas se esgota, instala-se o pânico. Os diretores gerais reúnem-se de emergência, convocam os seus assessores e expressam-se num tom coloquial:
“Precisamos de um novo produto, capaz de seduzir as massas e influenciar os consumidores/espectadores.”
O estado de pânico das indústrias (re)criativas é cíclico e constante. Afinal quando temos uma indústria que se caracteriza, genericamente, pela criação de produtos “culturais” tão-somente adaptados ao consumo generalizado das massas, em linha com a singela máxima do – quanto mais melhor – tendo sempre como referência a acumulação de capital, não se poderia esperar outro resultado.
Bom exemplo destas práticas são as declarações dos programadores culturais e outros agentes subsidiados pela indústria (re)criativa, a propósito dos eventos que promovem: “Foi um êxito! Bilheteiras esgotadas”, “… a opinião e crítica na imprensa especializada é unânime, foi o mais participado festival de sempre!”, “as receitas ultrapassam as expectativas da organização…”
Como se a relevância do ato cultural pudesse alguma vez ser mensurável apenas pelo número de espectadores que participam nos eventos.
As crises e consequente pânico da indústria ocorrem igualmente no sector discográfico. Os senhores das discográficas (geralmente em representação de grandes grupos financeiros), emmomentos de crise, recorrem à exploração de territórios culturais onde há muito sabem que o lucro é garantido. Selecionam a “presa” e revestem-na de uma outra roupagem que permita ao consumidor apreciar sem qualquer esforço interpretativo.
O mais recente exemplo dessas apropriações culturais, protagonizadas pela pela indústria discográfica, pode ser apreciado no projeto comercial de Madonna – Madame X. No meio de umas quantas faixas musicais e outras “sedutoras” cantorias, lá surge a canção “Batuka”.
Pois é, Madonna, a luminosa estrela do pop, recorreu ao tradicional batuku (diz-se batuku ou batuk, e não batuka) cabo-verdiano para recriar uma das músicas integradas no seu novo álbum.
Dizem as revistas de tom rosa, que Madonna está apaixonada pelas ilhas e pela vibrante manifestação da cultura popular cabo-verdiana.
Esta paixão, acrescentam, deve-se ao fervoroso empenhamento do Dino Santiago na promoção de Cabo Verde na diáspora. Nas famigeradas revistas, pode ainda ler-se que Dino não descansa enquanto não conseguir levar a avó do pop a cabo verde depois, claro está, de a levar à Quarteira.
Ficamos sem palavras, não sabemos como agradecer o tão enorme empenhamento altruísta deDino.
Não se espantem, a fórmula de sedução barata é a mesma aplicada em território luso. Madonna confessa-se apaixonada pelo fado e tantas outras coisas, que vai conhecendo ao longo da sua estadia em Lisboa.
Até podemos desvalorizar os empenhados malabarismos de Madonna nas suas recriações pop. Como se referiu anteriormente, esta é a fórmula que as indústrias culturais utilizam para vender os seus produtos comerciais. O que não devemos ignorar é o entusiasmo quase delirante com que certos governantes promovem mais ou menos disfarçadamente esta iniciativa comercial da Madonna, por, dizem, ser importante para Cabo Verde. Será que os senhores governantes e seus assessores não sabem que este show é apenas mais uma sofisticada estratégia de marketing concebida por uma poderosa maquina-de-fazer-estrelas, pouco ou nada preocupada em homenagear a identidade da cultura cabo-verdiana? Estamos certos que sabem, e por isso mesmo, é indecoroso e eticamente reprovável que se sirvam deste fenómeno de massas para propagandearem como vitória das suas políticas governativas, sobretudo quando se vivem momentos de crescente crítica social perante a falta de resposta em resolver os reais problemas que quotidianamente afligem as populações.
Idêntico comportamento tem tido o executivo governamental português (não fossemos nós países irmãos quase gémeos). Promovem festas em honra da estrela pop, concedem benesses camarárias, e claro, de quando em vez o nosso estimado Presidente da República, repleto de abraços e bafientos beijinhos para oferecer, promove esta e outras estrelas do mainstream. “Devemos acarinhar a presença da estrela pop, porque afinal, tem sido muito bom para Portugal” – dizem, de boca cheia.
Para que esta sucinta reflexão não fique órfã, analisemos um pouco mais detalhadamente esta cantiga de Madonna.
O videoclip oficial começa com uma breve introdução acerca do estilo musical “Batuku”, referindo que este estilo, outrora terá servido como ato de libertação de um povo escravizado. Mais à frente esclarece que a igreja, naquele tempo mais recuado, Terá proibido este género musical por considerar um ato de rebelião. Fica-nos a dúvida histórica, quem escravizava quem? Porque o fazia e como o fazia?
A canção Batuka baseia-se numa estrutura verso-refrão, o que lhe confere uma simplicidade capaz de agradar a todos sem, no entanto, se comprometer com lugar algum, nem determinar um gosto em particular, expedientes típicos do género musical pop (Simon Frith). Esta simplicidade pode ser sedutora para o ouvido, mas é essencialmente redutora, pois esvazia a mensagem identitária do Batuku, transformando-o numa espécie de música chuinga.
Muitos poderão argumentar que esta canção e seu vídeoclip, pelo facto de podermos visionar a bandeira de Cabo Verde durante 42 segundos possa ser, por si só, benéfico para a promoção do país no mundo. Mesmo que durante estes “triunfantes” momentos de orgulho nacionalista, sejamos forçados a presenciar as acrobacias decadentes da septuagenária cantora pop, bem no centro do ecrã. Julgo que há formas mais dignas e eficazes de representar culturalmente o paísno mundo!
A grosseria desta inopinada recriação de Madonna, é uma constante durante todo o vídeoclip, destaca-se, pela sua desfaçatez a opção de filmar as praias da costa litoral do antigo colonizador, para representar as paisagens das ilhas, o que demonstra um profundo desconhecimento e desrespeito pela história de Cabo Verde. Não chega o mar, o vento, o sol da costa portuguesa para recriar a verdadeira alma e paisagem crioula. Falta a luz do mais a sul, a aridez e a sede da terra, falta a orografia singular da ilha de Santiago.
Em síntese, esta é uma canção repleta de clichés e de referências grosseiras que irremediavelmente nos afastam da oportunidade de sentirmos a força do Batuku e a sua autêntica expressão identitária. Certamente Madonna não saberá – o Batuku é uma das mais antigas manifestações musicais de Cabo Verde (KaKá Barbosa).
Perante a clareza dos propósitos comerciais desta canção e de toda a indústria discográfica que a promove, como podemos tolerar que os governantes e suas assessorias propaguem estas estratégias comerciais de Madonna?
Será que todos lhes devemos lembrar que esta apropriação do Batuku por parte da indústria esvazia-o da sua dimensão cultural e identitária? Já não estamos todos cansados destes ministérios das indústrias culturais, marionetas de grupos financeiros e outros interesses em que o lucro e a projeção de vedetas são os únicos objetivos?
Não deveriam ser exatamente os governantes a proteger e a valorizar toda a dimensão criativa e identitária do povo que representam face ao ataque dos predadores que transformam a genialidade em banalidade?
Resta-nos perceber se efetivamente não o fazem, por falta de competência ou por completa incapacidade e negligência.
Cabe a nós povo dizer a todos eles que o Batuku é uma genuína e resistente manifestação cultural tantas vezes menosprezada e reprimida pelo antigo governo colonial português, referindo-se a este género musical como “música do povo” ou “música do preto” (Gonçalves e Monteiro, 2005)
Cabe a todos, sempre que assistimos ao branqueamento da história, proteger e dignificar o passado, sem pastiches, maquilhagens e (ou) preconceitos. Senhores governantes, o nosso património cultural não é um produto, nem um bem transacionável.
Ilha do Fogo, São Filipe, 2019
Contos da Macaronésia
(Publicado no Jornal Santiago Magazine 22 de agosto 2019,
https://www.santiagomagazine.cv/index.php/mais/n-colunista/3285-madona )