
A abertura do ano escolar é sempre um momento político de grande relevo mediático. Ministros e secretários de Estado deixam os gabinetes, vestem indumentária apropriada, sem dispensarem as habituais mangas-de-alpaca, decoram um punhado de frases feitas e, de cabeça erguida e peito feito, visitam escolas, protagonizando entrevistas às rádios, jornais e televisões.
Por coincidência (ou não), o programa de abertura do ano letivo contemplou a Escola EBS Gil Vicente, em Lisboa, onde, pela primeira vez, exerço funções. Já me habituei a esta espécie de roda da fortuna, que me concede o privilégio de participar nesta tecedura do destino.
O ministro Fernando Alexandre não compareceu. Em sua representação oficial vieram Cristo, O’Secretário de Estado da Educação; o Diretor-Geral da DGESTE; a Câmara Municipal de Lisboa fez- se representar pela senhora Vereadora da Educação Sofia Athayde. E, claro, para completar a comitiva, o assessor de comunicação do ministério – esse canivete suíço incumbido de fotografar, segredar e vigiar para que nada falhe à coreografia mediática.
Terminada a visita ao espaço escolar, depois dos cumprimentos, acenos e outras rebeldias ensaiadas, a comitiva dirigiu-se à biblioteca para uma curta conversa com a comunidade educativa.
Se, por um lado, este folclore mediático se torna enfadonho, por outro é uma oportunidade para confrontar os decisores políticos com a realidade das nossas escolas e medir as suas reações perante problemas concretos.

Cristo, O’Secretário apresentava uma postura serena e confiante. Quando abordado por alunos que lhe pediram aumentos salariais para os seus professores, rendas ajustadas aos salários dos pais e mais investimento na escola pública, esboçou até um sorriso maroto – num misto de admiração e condescendência diante da sagacidade infantil disfarçada de travessura.
Pena que essa postura gentil se tenha esvanecido assim que se viu confrontado com as dificuldades dos professores, nomeadamente as rendas exorbitantes, as cauções de centenas de euros, os abusos praticados pelo mercado de arrendamento desregulado. De facto, perante uma total ausência de medidas institucionais e logísticas concretas, ao invés de dedicarem as primeiras semanas de trabalho à definição de estratégias pedagógicas, reuniões e antecipação de problemas educativos, os professores vêem-se forçados a desviar o seu tempo e atenção para a extenuante procura de lugar digno para dormir e comer.
A descrição do fatídico enredo provocou um sobressalto municipal, a senhora vereadora Sofia Athayde não se conteve e elevou a voz para contrapor, lembrando a existência do programa municipal de apoio à renda, ao qual os professores podem concorrer! Só não soube responder quando abririam as candidaturas, se é que vão abrir, tamanho o caos que se regista gabinetes da câmara, a semanas do final de um atribulado mandato.
Perante as dificuldades narradas, esperava-se que Cristo, O’Secretário pudesse esclarecer a razão pela qual se encontram “temporariamente encerrados” os programas de “Apoio Extraordinário à Renda” e “Apoio Extraordinário à Deslocação” (como se lê no portal SIGRHE) numa altura em que os professores deslocados mais necessitam do dinheiro para custear viagens e garantir lugar onde morar. A resposta do Secretário foi deveras reconfortante, para além de confirmar o bloqueio temporário da plataforma, acrescentou: “Não se preocupem, o subsídio será pago com retroativos”. Nas suas palavras, esses apoios extraordinários terão sido idealizados para cativar os professores mais jovens, funcionando como incentivo remuneratório de atração para as zonas pedagógicas carenciadas. Pois, no seu entendimento, os professores que já cá estão não têm problemas. Se este mecanismo extraordinário cria clivagens salariais e mal-estar nas escolas, essa não é matéria que pareça tirar o sono ao ministério.
A sessão continuou animada até ao momento em que os irritantes na sala estragaram a festa: perguntámos ao Secretário o que estavam a fazer, em conjunto com as câmaras municipais, para resolver os graves problemas infraestruturais das escolas — 754 escolas públicas portuguesas com problemas sérios, 283 com amianto. Cristo, O’Secretário lançou um olhar de soslaio à senhora vereadora, que prontamente assegurou: “As escolas de Lisboa não têm amianto, estão limpas!”, menosprezando tacitamente os restantes problemas estruturais que ciclicamente enchem as notícias pelas piores razões.
São pequenos episódios “festivos” como este, sem a presença da comunicação social, sem poses e discursos ensaiados dos governantes, que nos revelam a rota e o naufrágio à vista da escola pública – apesar das promessas em sentido contrário.
Pior ainda é percebermos que o discurso governamental assenta em medidas avulsas e muito senso comum. Prometem previsibilidade na carreira, mas não conseguem assegurar sequer a transição geracional entre professores. Multiplicam apoios extraordinários, pontuais e insuficientes, para remendar os problemas de fundo que afastam os docentes das escolas.
Vimo-los, em março, sem dados para tomar decisões estruturais sobre a falta de professores e, vemo-los agora, meses depois, nas televisões alegando que “não há falta de professores, o que há é falta de reorganização interna”. Estranhamente essa prometida reorganização tarda mas não falha no agravamento de novos e velhos problemas, estão de volta as turmas sobrelotadas, aumenta a contratação de professores sem a devida qualificação profissional, amplia-se a imposição de horas extraordinárias à revelia dos sindicatos, apoia-se a criação de horários desregulados, investe-se no encerramento e desarticulação direções-gerais e organismos sob a tutela do MECI, como forma de deslocar “quadros competentes” para as escolas, porque — nas palavras do ministro — “muita falta fazem”.
E, tudo isto decorre ao sabor da inspiração num relatório encomendado à consultora KPMG, uma espécie de manual de sobrevivência que o ministro Fernando Alexandre terá adoptado para sustentar as suas decisões. Mas, que talvez por falta de coragem política, tarda em tornar público o referido documento orientador.
Neste contexto, e perante a anunciada discussão e reforma do Estatuto da Carreira Docente fica a interrogação: Podemos confiar no Ministro da Educação Fernando Alexandre?
2 Comments
Add YoursArtigo muito assertivo.
Se não fosse haver este colega atento e sem medo de confrontar a comitiva nesta visita à sua escola (Escola EBS Gil Vicente), nós ficaríamos sem saber desta exibição de políticos que se julgam inquestionáveis.
Também, Pedro Brito, que eu saúdo pela sua assertividade na crítica audaz contra estes políticos da educação, voltou a focar os problemas que continuam a sufocar a nossa escola pública.
E assim vai o reino sem rei nem roque em que vivemos…um lamaçal sem forma visível de melhoras… No fim das contas, baralha e torna a dar porque o jogo está viciado e é preciso manter as aparências, não vá o mar ficar mais alto que a terra.