Roteiro para uma Crónica Impura

O Rei está morto, mas o Poeta não.
Hoje, esta figura lusófona serve de casa de acolhimento a todos aqueles que, com um propósito, servem a causa da nação.
Curiosamente, o Poeta terá encontrado, na reabilitação das crónicas, uma forma de continuar, na atualidade, a afirmar a sua portugalidade mercantilista em terras que há muito não lhe pertence.

Crónicas de navegadores ao serviço da corte, de grande eloquência narrativa e discursos panegíricos de gentes e terras exóticas, são coisas do passado.
O Rei está morto, mas o Poeta não.
Hoje, esta figura lusófona serve de casa de acolhimento a todos aqueles que, com um propósito, servem a ​causa da nação​.
Curiosamente, o Poeta terá encontrado, na reabilitação das crónicas, uma forma de continuar, na atualidade, a afirmar a sua ​portugalidade mercantilista​ em terras que há muito não lhe pertence.
Mutatis Mutandis​, o Poeta apropriou-se da estratégia comunicativa das crónicas, alterou-lhes a forma mas, mantêm o mau propósito.
Porém, para cumprir esse desígnio é necessário encontrar o navegador, o escritor, o prosador, o cronista, disponível para escrever coisas burlescas, adulteradas e impuras, que permitam entreter o leitor e, ao mesmo tempo, cumprir as intenções do Poeta que o acolhe.
Lamentavelmente, o que não falta, em terras outrora ultramarinas, são escritores-cronistas disponíveis para se submeterem às exigências do Poeta e redigirem, com mão fluida e escrita lamecha, os famigerados relatos encomendados!
Para facilitar a tarefa do cronista e assegurar o cumprimento das orientações do Poeta, é-lhe apresentado um roteiro, que terá de respeitar escrupulosamente, sob pena de, caso decorra algum incumprimento, o *negoce não se concretizar.*
Num exercício cómico-trágico, vejamos o hipotético conteúdo, de um roteiro para a criação de uma crónica em solo crioulo:

O cronista deve citar escritores e outras personalidades de renome que se expressem em português e que tenham de certo modo contribuído para a afirmação da portugalidade além mar.
Deve referir locais turísticos e “instagramaveis”, que subrepticiamente demonstrem a presença dos países irmãos;
Procurar ilustrar situações quotidianas que embelezem a narrativa, dando-lhe um ar de simplicidade disfarçada e honestidade transvestida;
Evitar, senão mesmo, obliterar no seu texto, aspetos que possam levantar questionamentos incómodos e politicamente proibidos, sobretudo, no que diz respeito a atividades económicas ligadas à agropecuária e pescas;
Evitar questionamentos identitários e outros de cariz racial;
Distanciar-se de assuntos relacionados com migrações e relações com o continente europeu;
Nunca salientar, nem que seja de uma forma metafórica, problemas relacionados com a habitação das populações mais carenciadas ou outros atropelos urbanos.
Negligenciar assuntos relacionados com assimetrias e clivagens sociais.
Por fim, não deverá esquecer que a sua passagem, como cronista pela cidade, é meramente circunstancial e tem como único propósito servir o mercado que alimenta o Poeta e seu séquito.

“Sinto que estou dentro de um derrame de leite”

O cronista convidado, certamente respeitará na íntegra as orientações do roteiro, redigindo, no decurso da breve estadia, um relato deturpado e impuro, cheio de clichés, que em nada honrará a identidade da cidade.
Bem pelo contrário, a sua escrita obediente, servirá apenas para criar uma imagem mítica e alegórica, desrespeitando a cultura do povo, os seus hábitos e costumes, as suas aspirações e anseios.
Ainda no quarto de hotel, o escritor-cronista submeterá a crónica, entretanto concluída, à apreciação do Poeta.
Após a verificação, sob a chancela do Poeta, a crónica feita por encomenda, será difundida pela máquina de propaganda mercantilista, sob a égide de grandes empresas literárias e algumas improváveis… panificadoras.

Praia, 4 de junho 2022


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